segunda-feira, 16 de abril de 2012

Muito esperto


Então você tem contado umas verdades ao avesso por aí, como quem não quer nada? Converte os fatos em realidades paralelas, flutuantes e impalpáveis? Bobagem. Cria um mundinho em que domina a opinião de todos com frases bem estruturadas, entonação convincente e uma piscadela no final - porque pitada de charme tempera a imagem, não é mesmo? Gênio.

A personalidade foi criada; moldada de acordo com o que for socialmente conveniente. Muda as roupas, o corte de cabelo, a profissão, a mãe. Tudo experimentação, para ver o que agrada mais o público. Confunde pessoa com personagem, porque, ainda que não seja artista, vive do espetáculo. Ensaia as cenas do cotidiano, decora as falas, encarna o eu inventado e fica tudo bem. Não prevê que uma hora deixa-se de ser Johnny para voltar a ser João Guilherme Estrella. Pensa que é eterno. Muito esperto.

Pois bem. Você tem atitude de líder, entra no recinto como se dele fosse dono e todo mundo acredita? Uma pena que integra o time dos fracos, dos inseguros de si mesmos, dos habitantes de armários. Ninguém sabe quem mora ali, por trás da máscara. Há quem note, no entanto, que a figura exposta tem pompa demais. Excesso de sorrisos, de cumprimentos, de vínculos profundos e intensos, nascidos dois minutos atrás. Ninguém soma tantos adjetivos a ponto de a equação resultar em perfeição. Apenas os ilegítimos.

Tem achado graça quando convence com mentiras repentinas, não é mesmo? Confunde enganar com manipular, porque assim acredita que é mais poderoso. Ah, sim. O ludíbrio eleva a confiança que acha que tem. Recebe boa vontade, mas acha mais satisfatório retribuí-la com baboseiras que o põem no domínio da situação. Bom mesmo é ter vantagem sobre todo mundo, passando por cima de quem é do bem, não é? Astuto.

Meus parabéns. A vitrine está montada, brilhando, e a mercadoria é uma só: você, astro! Mas a vida é feita por quem é de pele e osso; independe do figurino. Aos poucos o lobo revela-se cordeiro, embora, pobrezinho, não perceba. E a plateia assiste, sem reação, à sua forma desfigurando-se, pois não há conteúdo para sustentá-la. Senhoras e senhores, o espetáculo é efêmero. 



Imagem: Reprodução.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O Cheesecake Todo


Quem já teve que fazer regime para perder peso, sabe o quanto é chato. Cortar uma infinidade de delícias da dieta, diminuir as quantidades, comer coisas leves e apenas em horário determinado são desafios bem difíceis. As refeições passam a ser um compromisso cujo cumprimento exige atenção a detalhes e regras; às vezes até perdem a graça. E quando você vê, já acabou – aguarde mais três horas no mínimo. Porém, levando-se em conta que esse tipo de sacrifício oferece em troca inúmeras vantagens, basta determinação para aguentar. Por um bom motivo, a gente aceita o pouco que vem no prato.

Mas não deveria ser assim para tudo. Aceitamos pouco demais. Contentamo-nos com falta de tempo, com salário ruim, com atenção de menos, com pouquíssimo afeto, com respeito nenhum. Admitimos o excesso de escassez. Vivemos na sociedade do trabalho-antes-do-lazer, e ai de quem fugir do padrão e se divertir tanto quanto (ou mais do que) cumpre em serviço. Oferecemos tempo, energia, dinheiro e paciência, para receber em troca nada além de pouco.

A ideia que a hierarquia nos passa faz com que pensemos que não podemos, não conseguimos - e pior -, que não temos direito. Não apenas em se tratar da autoridade do governo em confronto com a suposta impotência da população, mas também a mídia envia essa mensagem. Qualquer um vira celebridade sem sequer mostrar talento ou mérito, mas é colocado na posição de superior. E, em consequência, o resto vira inferior. Quem fica no nível de baixo entende que não tem voz e não pode fazer as mesmas coisas que quem tem poder, ou melhor, quem aparece.

Esse tipo de visão também rege os mais medíocres círculos sociais. É nítido que em algumas cabecinhas habita a ideia de que quem não satisfaz determinadas condutas impostas virtualmente - sejam elas de âmbito estético, financeiro ou cultural -, não é apto para integrar o seu grupo. Entretanto, o mais espantoso é que esse tipo de pensamento de fato exerce força em quem dele é alvo. Uns se colocam alguns degraus acima dos outros, simplesmente porque assim decidem, e a massa fica olhando lá de baixo, inerte.

Pois cá estou eu, cidadã das mais comuns, exigindo o muito. Não ocupo um cargo de poder, tampouco sou famosa, e muito menos herdeira do Bill Gates. Mesmo assim, não há criatura nesse mundo que possa desmerecer minhas opiniões, anular os meus direitos ou fazer com que me sinta irrelevante. No meu regime, não dispenso o meu espaço. Que fique claro: sou absolutamente contra qualquer sinal de arrogância. É exatamente o equilíbrio entre a modéstia e a autoconfiança que nos proporciona a prerrogativa de, sem invadir o espaço de ninguém, não aceitar pouco à toa. 

Não me venha com atenção pela metade, restos de sentimento, histórias incompletas, respeito em falta. Não aceito migalhas. No caso da dieta, contenho-me. Durante esse período é indispensável gastar mais (calorias) e consumir menos. Mas, veja bem, se for para quebrá-la, me entregar ao maravilhoso mundo do açúcar, que seja com intensidade. Que seja com uma fatia imensa de cheesecake. Ou ele inteiro. Nada menos.



Imagem: Gettyimages

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Que Vergonha


Por ter ficado na dúvida sobre qual sinal de pontuação teria melhor efeito no título, preferi não utilizar nenhum, até porque o uso não é obrigatório. Fica destinado ao leitor decidir se cabe ali uma dúvida, uma exclamação, ou ponto nenhum, sem grandes emoções. Mas não se aprece; deixe para eleger após a leitura dos próximos parágrafos.


Passa o tempo e as tendências de comportamento têm mudado numa frequência cada vez maior. A metamorfose tem acontecido tão rápido que fica até difícil posicionar-se criticamente e avaliar o que está acontecendo. Parece-me hoje que o mundo inteiro está qualificado para ser juiz das partidas cotidianas de sobrevivência. Por todos os lados, pares de olhos atentos acompanham os movimentos alheios e ouvidos escutam o que está sendo dito. A notícia boa é que os sentidos do corpo estão em plena atividade. À exceção do tato, que parece estar em falta no mercado das ciências humanas. O fato é que tem gente se confundindo e acaba achando que pode sentir pelos outros.

Voltando ao campo da ciência, quero revelar a minha desatenção para tal. Acho que foi descuido meu, mas parece que fui a única a não ficar sabendo de uma descoberta revolucionária: pode-se transferir vergonha por osmose. Cientistas chamam o fenômeno de Vergonha Alheia (VA). Trata-se de capacidade humana de deslocar espontaneamente a sensação de constrangimento de uma pessoa para outra. O mais incrível é que o indivíduo de origem não precisa nem mesmo saber da existência do sentimento. Na maioria dos casos, a vergonha só é percebida pelo receptor. Atualmente estão sendo realizadas pesquisas sobre um fenômeno parecido, porém no qual a transferência ocorre por telepatia.

A descoberta em questão acabou gerando problemas no campo social. Acontece que as investigações tiveram início em Brasília e continuaram em outras grandes cidades brasileiras. Os pesquisadores tentavam avaliar a reação dos cidadãos diante de acontecimentos oriundos de um local chamado Praça dos Três Poderes, pois suspeitava-se de que o lugar era fonte de altos níveis de radioatividade. Os cientistas chegaram à conclusão de que realmente havia radiação, o que anulava os efeitos da VA originados na região.

A verdadeira confusão tomou cabo quando os dados foram divulgados. A população ateve-se majoritariamente ao fato de que poderia utilizar-se do fenômeno em qualquer outra parte do mundo, dando pouca importância à única em que não poderia. A partir de então, desencadeou-se uma epidemia de Vergonha Alheia, atingindo principalmente os jovens que, uma vez contaminados, não conseguem controlar o fenômeno.

A assessoria de imprensa do Sistema Único de Saúde (SUS) publicou uma nota informando que a VA foi incluída na Lista Nacional de Doenças Sociais. Os sintomas detectados até então foram: desaprovação da roupa alheia, crítica ao gosto musical diferente do próprio, ausência de autoconfiança, excesso de interesse nas atitudes dos outros e falta de atividades para preencher o tempo e a mente. Todo mundo desnutrido de respeito. Foram veiculadas campanhas em diversas mídias para auxiliar na identificação do quadro.

O Ministério da Saúde adverte: Essa doença pode ser contagiosa, mas na maioria dos casos desenvolve-se dentro de cada um. O tratamento é indicado mesmo em casos de suspeita de dengue.

P.S.1: Todos os dados são fictícios.
P.S.2: Pronto, agora já pode pontuar o título.

Imagem: Gettyimages