De vez em quando, o plugue dos meus fones de ouvido escapa da entrada do aparelho de mp3, ativando o autofalante com um volume considerável. É meio constrangedor, até porque costuma acontecer em lugares públicos, como numa sala de espera ou no ônibus, inesperadamente quebrando o silêncio – e, é claro, fico feito uma desesperada apertando todos os botões tentando pausar as músicas.
O engraçado é que cada vez isso ocorre imagino como seria
caso tivesse um conector desses em minha mente, e que, de repente, escapasse. Se
sem querer ativasse autofalantes da minha cabeça, rompendo a até então
impenetrável privacidade dos meus pensamentos. Sinceramente, apenas considerar
o estrago já me deixa desconfortável.
Na crônica Se eu fosse
eu, publicada no livro A Descoberta
do Mundo, Clarice Lispector falava de algo parecido. Divagava sobre o que
aconteceria caso as pessoas se despissem da imagem de si e encarassem o desafio
de ser o que realmente são por dentro. É algo a se considerar: viver em
sociedade faz com que ninguém seja exatamente o que gostaria de ser. Isso não
significa infelicidade, porém lembra que não apenas nossas ações são limitadas,
como também o próprio jeito de ser. Sendo quem somos, nos desprenderíamos das
regras com as quais não concordamos, mas que o senso social nos obriga a
cumprir.
“Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso
contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na
cadeia.”, confessa Clarice. Honestamente, eu também. Na verdade, acredito que
já estamos todos presos, apenas em uma cadeia diferente. Somos induzidos a acreditar
que temos opções, e que as supostas escolhas são sinônimo de felicidade. E
aceitamos, satisfeitos. O que é certo ou errado já foi decidido antes que
chegássemos: está tudo escrito, é só ler o manual. Podemos seguir a conduta do
bom samaritano e descansar no final do dia, felizes por haver regras que
facilitam a nossa vida. Abster nosso questionamento é só um detalhe; são as
letras miúdas cuja leitura é dispensável.
Se eu fosse eu, seria uma total desbocada. Gritaria na cara
do mundo o quanto é patética a submissão das pessoas à imagem. Que o fato de as
aparências dominarem o julgamento torna as mentes pequenas, senão desprezíveis.
Que a necessidade de parecer, mesmo sem realmente ser, resulta em indivíduos
cada vez menos interessantes. Que o medo de ser vulnerável é mais um indício da
crescente hipocrisia humana. Que a falta de sensibilidade não torna ninguém
mais forte, apenas cego, e esse é um dos maiores motivos para estar todo mundo
desorientado no meio dessa balbúrdia. Que quase ninguém cultiva afetos, apenas
contatos, e por causa dessa estupidez está sobrando solidão por aí. Que
autopreservação e egoísmo são conceitos totalmente distintos, mas parece que
ninguém sabe diferenciar. Que está faltando realismo nessa realidade acéfala.
Entretanto, pacata que sou, nem mesmo sussurro essas
palavras, mantenho meus pensamentos muito bem plugados ao ambiente seguro da
mente. Sigo sendo o eu que posso ser, esforçando-me para não imergir totalmente na inércia de
ser apenas mais um boçal. Tento.
Imagem: gettyimages