segunda-feira, 30 de março de 2015

Oito Patas



A gente assistiu à história toda acontecer e fez de tudo pra ajudar. Pode parecer que somos só oito patas fofinhas, mas temos muitos bigodes de astúcia. Precisamos confessar que tínhamos medo do dia que você fosse embora, papai. Certamente não por nós dois, mas pela mamãe, que vivia em função de te agradar, sem ver que a batalha estava perdida.

Até que você se foi.

Nosso receio maior era porque não sabíamos se mamãe ia notar tudo que a gente já enxergava faz tempo. Tínhamos certeza de que ela podia ficar bem sozinha, mas ela não.

A gente soube que logo você não ia aparecer mais quando começou a nos deixar esperando. A mamãe avisava que você estava vindo às 19h, mas você só aparecia depois das 23h e ficava bravo se ela pedisse alguma explicação. Depois de um tempo ela foi convencida de que estava mesmo errada. Onde já se viu querer saber por onde andava o papai naquelas quatro horas? Que maluca neurótica, né.

Os felinos também têm um olfato bastante aguçado, sabia, papai? A gente sentia em você o aroma de alguém que nunca havia estado naquela casa e você nem se ligava. Não era de se estranhar, já que você não notava nem o cheiro incrível da mamãe, sempre tão perfumada, com todos aqueles cremes importados.

Ela também te encontrava toda produzida, com roupas nas quais as mamães dos nossos amigos jamais entrariam, e você nem olhava mais pra ela. Por um tempo nos fez pensar que sua visão estava péssima, mas depois entendemos que não era bem isso.

Notamos que você não queria mais ir nos ver e, em vez de ir embora logo, quase acabou com a sanidade da mamãe. Ela ficava muito mais cheia de energia quando você não estava por perto e chorava sem entender do seu lado. Lembra? Foi bem mais de uma vez, papai.

Como você não tinha coragem de desocupar o terreno, a gente começou a tentar tirar você dali. Nunca notou que a gente passava a noite toda te arranhando e tentando te acordar, enquanto deixávamos a mamãe dormir na mais santa paz? Pois é.

Mas aí teve aquela noite que a mamãe não apareceu e a gente sabia que algo tinha acontecido, finalmente. E você não viria mais. Por alguns dias depois disso, aquela moça que entrava e saía de casa nem parecia ela mesma de tão desnorteada. Mas foi pouco tempo até que isso se tornasse algo bom.

Logo ela se mostrou mais leve e cheia de disposição. Encaixotou todo o nosso lar (menos as suas coisas, que ficaram lá, papai) e nos levou pra um novo endereço. Agora a gente tem mais espaço pra correr, novas janelas pra espiar (e escalar) e um sofá só nosso.

E a mamãe?

Ela ganhou a vida dela de volta. Perdeu alguns quilos, a maioria carregados nas costas. Ficou mais bonita, mais alegre, mais viva. Organiza o tempo dela conforme as próprias vontades, faz programas legais o tempo todo com os amigos e nunca mais ouviu ninguém dizendo que ela sufoca. Aparentemente, só você não queria a atenção dela, papai.

Ela tem andado em novas ruas, dormido em novos quartos e provado outros sabores. Ouve as músicas que tem vontade sem ser questionada, faz todos os comentários que quer durante um filme e nunca mais preparou um café da manhã que tenha sido ignorado. Criou uma rotina que você nunca vai conhecer, fez uma tatuagem na qual você nunca vai tocar e fechou as portas pra tudo que leva ao passado.

Ainda bem que o inevitável aconteceu e você se foi, abrindo espaço pra que ela voltasse a ser feliz. E ela conseguiu, como a gente esperava. Você também, né? Pelo menos é que a gente ouve ela dizendo por aí: que foi o melhor pra vocês dois.

Ronronamos aliviados.

Ela não precisa mais de você. Nem a gente. Prrr.