domingo, 31 de março de 2013

Lacuna



Notei. Foi quando já fazia horas que estava batendo nas teclas do computador sem intervalo, os olhos cansados, aquele zumbido tradicional depois de certo tempo. Antes pensava ser a tela, aquela luz incansável atingindo as córneas, mas depois de descobrir em mim um déficit de atenção digital, percebi que caí, sim, no tão famoso excesso de informação. Hum, ok, clichê. Aba atrás de aba, quero ver isso, vou ler esse artigo daqui a pouco, essa foto é nova, esse aqui ficou solteiro, essa aqui se formou, não achei superinteressante, depois eu assino, esse colunista só pode ser comprado, o anexo é muito pesado, cinco segundos para pular o anúncio. Nem mesmo sei a quantidade de vezes que mudei de janela antes de terminar esse parágrafo.

O sintoma: desatenção. Hoje passei o dia inteiro sem ouvir música. Posso ter escutado um hit qualquer vindo da rua, durante o trajeto de sempre ou em algum vídeo aleatório que eu comecei a ver mas desisti em menos de um minuto. Entretanto, os discos favoritos e os que aguardam na fila desde o lançamento não chegaram nem perto dos meus tímpanos. Música, de uma forma geral, está no topo da minha lista de interesses e, no final do dia, me dei conta de que a esqueci  lá longe, com os demais planos que ficaram dormindo quando saí de casa logo cedo. Não reservei sequer um momento para me conceder esse afago sonoro, esse carinho na alma, esse prazer tão simples para qual basta ter ouvidos. Preenchi o dia com inúmeras atividades, mas deixei uma lacuna no campo da atenção a mim mesma.

Assusta saber que mesmo estando consciente do estrago, não passo nem perto da exceção à regra: sou mais uma das vítimas.  É fácil achar errado colocar obrigações do ofício na frente dos interesses pessoais, falar confiante que não se deve sacrificar a saúde (física e mental) em nome de interesses financeiros, sociais ou profissionais. A qualidade de vida em primeiro lugar. Aham, tá bom. A gente se acha muito lúcido e esclarecido até olhar em volta e só enxergar quatro paredes, e aí perceber que encara mais o relógio do que o espelho.

Sem querer, a gente cria retratos de um desleixo consigo, provas de uma pobreza na dedicação ao próprio gozo. Mas tudo bem, é sem querer, lembra? Um vinil em silêncio, uma bicicleta às moscas, receitas guardadas, macarrão instantâneo, um violão empoeirado, um guia de viagem esquecido, um livro servindo apenas de peso. Hoje não deu tempo, amanhã sem falta, essa semana fica complicado, vou retomar durante as férias, é difícil voltar à ativa, há alguns anos eu levava jeito. Bom te ver, vamos marcar alguma coisa? Ai que saudade, mas tenho que ir, tá no meu horário.