segunda-feira, 2 de abril de 2012

Que Vergonha


Por ter ficado na dúvida sobre qual sinal de pontuação teria melhor efeito no título, preferi não utilizar nenhum, até porque o uso não é obrigatório. Fica destinado ao leitor decidir se cabe ali uma dúvida, uma exclamação, ou ponto nenhum, sem grandes emoções. Mas não se aprece; deixe para eleger após a leitura dos próximos parágrafos.


Passa o tempo e as tendências de comportamento têm mudado numa frequência cada vez maior. A metamorfose tem acontecido tão rápido que fica até difícil posicionar-se criticamente e avaliar o que está acontecendo. Parece-me hoje que o mundo inteiro está qualificado para ser juiz das partidas cotidianas de sobrevivência. Por todos os lados, pares de olhos atentos acompanham os movimentos alheios e ouvidos escutam o que está sendo dito. A notícia boa é que os sentidos do corpo estão em plena atividade. À exceção do tato, que parece estar em falta no mercado das ciências humanas. O fato é que tem gente se confundindo e acaba achando que pode sentir pelos outros.

Voltando ao campo da ciência, quero revelar a minha desatenção para tal. Acho que foi descuido meu, mas parece que fui a única a não ficar sabendo de uma descoberta revolucionária: pode-se transferir vergonha por osmose. Cientistas chamam o fenômeno de Vergonha Alheia (VA). Trata-se de capacidade humana de deslocar espontaneamente a sensação de constrangimento de uma pessoa para outra. O mais incrível é que o indivíduo de origem não precisa nem mesmo saber da existência do sentimento. Na maioria dos casos, a vergonha só é percebida pelo receptor. Atualmente estão sendo realizadas pesquisas sobre um fenômeno parecido, porém no qual a transferência ocorre por telepatia.

A descoberta em questão acabou gerando problemas no campo social. Acontece que as investigações tiveram início em Brasília e continuaram em outras grandes cidades brasileiras. Os pesquisadores tentavam avaliar a reação dos cidadãos diante de acontecimentos oriundos de um local chamado Praça dos Três Poderes, pois suspeitava-se de que o lugar era fonte de altos níveis de radioatividade. Os cientistas chegaram à conclusão de que realmente havia radiação, o que anulava os efeitos da VA originados na região.

A verdadeira confusão tomou cabo quando os dados foram divulgados. A população ateve-se majoritariamente ao fato de que poderia utilizar-se do fenômeno em qualquer outra parte do mundo, dando pouca importância à única em que não poderia. A partir de então, desencadeou-se uma epidemia de Vergonha Alheia, atingindo principalmente os jovens que, uma vez contaminados, não conseguem controlar o fenômeno.

A assessoria de imprensa do Sistema Único de Saúde (SUS) publicou uma nota informando que a VA foi incluída na Lista Nacional de Doenças Sociais. Os sintomas detectados até então foram: desaprovação da roupa alheia, crítica ao gosto musical diferente do próprio, ausência de autoconfiança, excesso de interesse nas atitudes dos outros e falta de atividades para preencher o tempo e a mente. Todo mundo desnutrido de respeito. Foram veiculadas campanhas em diversas mídias para auxiliar na identificação do quadro.

O Ministério da Saúde adverte: Essa doença pode ser contagiosa, mas na maioria dos casos desenvolve-se dentro de cada um. O tratamento é indicado mesmo em casos de suspeita de dengue.

P.S.1: Todos os dados são fictícios.
P.S.2: Pronto, agora já pode pontuar o título.

Imagem: Gettyimages

3 comentários:

  1. Demais. É extremamente suspeito deixar um comentário aqui, depois de tão gentil comentário recebido pro ti. Mas o texto é genial. Queria eu ter escrito.

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